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terça-feira, 23 de abril de 2024

A fada dos dentes

2019-11-30 16:17:22

Era esguia, deste que se entende por gente. E magra, suas juntas eram maiores que a própria cintura, mas não eram maiores que a testa, cuja metade ela escondeu, a vida toda, com o cabelo. Tímida porque se achava intragável, aos treze anos desenvolveu um pomo de adão bem maior que a média dos meninos nessa idade.

Quis passar uma juventude despercebida e, ao notar que se tornava adulta, viu que acumulou uma história rasa e frígida; sua personalidade era uma bacia d’água. Nem sentia desejos sexuais, não gostava da ideia, não pensava em homens nem em mulheres.

Chegou aos trinta anos assim. Não tinha emprego, ficou sozinha com os pais, seus irmãos não lhe questionavam, parece que todos conformavam com seu destino insosso, tornou-se uma beata ermitoa.

Aos trinta anos nem mais nem menos começou a sonhar com os dentes. Talvez porque os seus fossem cavalares. Passou a sonhar com eles três vezes por semana, no mínimo. Dentes arrancados, dentes careados, dentaduras, bocas desdentadas, outras excessivamente dentadas, dentes sangrando, dentes sendo arrancados, entre outros.

Aquilo já ia por demasiado, mas sentia-se bem. Ansiava pelo sono e frustrava a cada manhã que não se lembrava deles, os sonhos.

Naquele ínterim descompensado, ocasião na qual cuidava de um de seus sobrinhos, tomou para si um livro infantil intitulado: “A fada dos dentes”; lia muito mal, por sinal, mas o suficiente para entender o que se passava numa estória infantil: as imagens a deslumbraram.

Fechou o livro, certa de que era predestinada. Não restavam dúvidas, a mesma fada que povoara a construção mitológica de sociedades passadas habitava agora seu espírito e sua missão era colecionar dentes infantis para saciar a sede do Deus dos seus sonhos.

Seu sobrinho a mirava com olhar de cumplicidade, entendera os fatos, toda criança entenderia, era a salvação para suas alminhas e não tinha tempo a perder.

Naquela noite, surrupiou o velho vestido de casamento da mãe, trancou-se em seu quarto, nunca havia se maquiado, mas gostou do resultado, fez de um lençol branco sua capa e envolveu um graveto em fita crepe.

Esperou dar meia noite; sondara com precisão milimétrica, antes do anoitecer, sua vizinhança, nem podia ir muito longe trajada daquela forma. A duas quadras dali uma criança meio desdentada ansiosa esperaria sua visita, estava certa disso, já a vira outras vezes, mas sequer imaginou que logo estariam tão próximas em espírito uma da outra.

Rumou para as mediações da casa quando o sino da matriz badalou doze vezes. Chegara sua hora. Esgueirou-se pelas calçadas da pequena cidade, certa de não ser vista, carregava consigo uma velha escada de jardineiro, seria suficiente, a casa era antiga e o quarto da criança contíguo à calçada.

Apoiou-se na parte mais baixa do telhado, queria olhar para trás e para os lados o tempo todo, certificando-se de que estava só, mas o véu a incomodava. Alcançou o telhado facilmente e, assustada com o ranger das vigas ouviu um “claque” de trincar de telhas. Conseguiu tirar uma delas.

Suas vistas ainda se acostumavam à escuridão e o vento por sobre o telhado a impediu de ouvir os gemidos que vinham de dentro do cômodo. Quando suas pupilas dilataram o suficiente, enxergou dois corpos nus friccionando-se, uma cena de sexo: estava no quarto errado; sentiu um calafrio!

Tentou retornar a telha ao lugar de origem rapidamente e sentiu-se desnuda, focada pela luz de uma lanterna que vinha da rua. Quis apoiar-se no telhado para se esconder do flagrante e enfiou o braço no buraco da telha. Que falta fez um forro.

A viga rachou ao meio e ela esborrachou no chão, com telha e tudo! Crê ter desacordado por uns instantes, porque só se lembra de ouvir um silêncio profundo; ao recobrar a consciência, notou que estava cercada; dois ou três policiais lhe davam voz de prisão, à frente de uma meia dúzia de curiosos; na porta, ao fundo, o olhar complacente de uma criança chorosa, segurava algo embrulhado entre os dedos e um pedaço de papel higiênico.

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