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quinta-feira, 18 de abril de 2024

Como o Reino Unido conseguiu ficar até 2009 sem uma Suprema Corte

2019-03-25 09:03:00

A insatisfação de muitos brasileiros com decisões recentes do STF (Supremo Tribunal Federal), entre elas a de transferir para a Justiça Eleitoral casos de corrupção como alguns dos crimes investigados pela Lava Jato, levou centenas de pessoas às ruas e tem motivado postagens e mensagens cada vez mais frequentes contra a Corte e seus integrantes.

Ministros passaram a ser acusados nas redes sociais de favorecerem a impunidade e de serem corruptos. O Supremo reagiu abrindo uma investigação para punir quem está espalhando notícias falsas ou postando mensagens de ódio contra os ministros – e mandados de busca e apreensão foram cumpridos em São Paulo e Alagoas para recolher computadores e retirar perfis do ar.

A iniciativa do STF acirrou ainda mais os ânimos e passou a motivar pedidos mais extremos, como o de extinção total da Corte Suprema, trazendo à tona a questão: é possível uma democracia sem um tribunal constitucional superior, independente dos poderes Legislativo e Executivo?

"Desconheço democracias sérias que não tenham um tribunal constitucional ou uma suprema corte", afirma o professor Nikolay Bispo, coordenador-executivo do Núcleo de Justiça e Constituição da FGV Direito SP, explicando que há dois modelos básicos de cortes supremas e muitas variações mundo afora.

No caso brasileiro, a Suprema Corte acumula as funções de atestar a consitucionalidade das leis e ser a última instância recursal, não cabendo, portanto, a aplicação de recursos a nenhuma outra instância jurídica – além de atuar como tribunal penal para políticos com foro privilegiado.

Caso brasileiro

No Brasil, o Supremo é uma instância superior extraordinária; suas decisões finais não podem ser recorridas a nenhum outro órgão.

Além do STF são tribunais superiores o Superior Tribunal de Justiça (STJ), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM).

Eles representam a terceira e última instância do Poder Judiciário, atuando em recursos que se iniciam no próprio tribunal ou revendo decisões tomadas nos tribunais estaduais e TRFs (Tribunais Regionais Federais), primeira e segunda instâncias, respectivamente.

Todos os juízes que atuam nos tribunais superiores são chamados de ministros e são nomeados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado.

Apesar dos diferentes modelos adotados pelo mundo, o professor de Direito Constitucional da PUC-SP Luiz Guilherme Arcaro Conci ressalta que as cortes supremas existem para assegurar a separação e o equilíbrio dos poderes, controlar excessos e defender direitos fundamentais de minorias. Por isso, diz o professor, são fundamentais em qualquer democracia saudável.

Mas Conci lembra que, apesar dos séculos de história, o Reino Unido foi uma das últimas democracias estáveis a criar a mais alta corte de Justiça separada do Legislativo e do Executivo.

Sem Suprema Corte até 2009

Em toda história da Inglaterra, o Parlamento britânico foi sempre o responsável por colocar fim aos processos judiciais. Em 1399, a Câmara dos Comuns (a câmara baixa do Parlamento) delegou à Câmara dos Lordes a tarefa de julgar as principais causas do país em última instância.

E, assim, por 610 anos os conflitos, em última instância, eram decididos pelo Comitê de Apelações da Câmara dos Lordes. Algo como se o Senado brasileiro tivesse uma comissão especial para julgar recursos e apelações.

Mas o Reino Unido não tem Constituição escrita, como os Estados Unidos e o Brasil. O Direito baseia-se na tradição, na chamada jurisprudência, ou seja, nas decisões anteriores dos tribunais e não em atos determinados pelo Legislativo ou pelo Executivo.

"A experiência do parlamentarismo britânico distancia-se do presidencialismo brasileiro, que se inspirou na experiência dos EUA. No Reino Unido, a ideia de soberania do parlamento sempre foi dominante, e o modelo de freios e contrapesos da separação de poderes nos termos do presidencialismo estadunidense não encontra ressonância", avalia Marcelo Neves, professor titular de Direito Público da UnB (Universidade de Brasília).

Durante muito tempo, o Comitê de Apelações da Câmara dos Lordes pouco decidiu. Foram, segundo o jornal britânico The Guardian, apenas cinco casos entre 1514 e 1589, e mais nenhum até 1621.

Um caso célebre de intervenção da Câmara dos Lordes como instância judiciária suprema começou em setembro de 1998 na detenção do general chileno Augusto Pinochet em Londres.

O ex-presidente chileno tinha ido à capital britânica para se submeter a uma cirurgia quando foi surpreendido pelo pedido de sua prisão encaminhado pelo juiz espanhol Baltasar Garzon. Pinochet era acusado de uma série de violações de direitos humanos, incluindo a responsabilidade pela morte, tortura e desaparecimento de milhares de pessoas durante o tempo em que permaneceu no poder no Chile, de 1972 a 1990.

A High Court britânica indeferiu inicialmente o pedido de prisão alegando que Pinochet gozava de foro privilegiado por ter sido chefe de Estado. Após a decisão do tribunal superior, foi a Câmara dos Lordes (a câmara alta do Legislativo britânico) que interveio para contestar a decisão da High Court e acatar o pedido de prisão. Pinochet permaneceu em prisão domiciliar em Londres enquanto o Judiciário britânico analisava o pedido de extradição impetrado pelo juiz espanhol.

O imbróglio só foi resolvido no começo do ano 2000, quando o então Ministro do Interior e da Justiça, Jack Straw, acatou a alegação da defesa do general com base em exames médicos que mostraram a "deterioração acelerada de seu estdo de saúde". O general pode então retornar ao Chile, após ter ficado detido por mais de um ano.

Criação da Suprema Corte

Partiu de um lorde a recomendação de se criar uma corte de apelação que fosse independente do Parlamento. O jurista Thomas Henry Bingham, o Barão de Bingham, instou o governo e sofreu pressões dos colegas.

Mas, com o apoio da mídia, prevaleceu a vontade do lorde. A Suprema Corte do Reino Unido, independente do Legislativo e Executivo, foi criada em 2005, mas só foi instalada quatro anos depois num prédio em frente ao Parlamento e ao lado da Abadia de Westminster, em Londres.

A própria Suprema Corte informa, em seu site, que foi criada para alcançar a completa separação dos poderes e aumentar a transparência no topo do Judiciário. Câmeras discretas filmam as sessões e as decisões são atualizadas no site da instituição.

Mas o professor de direito do King's College London, James Grant, classifica a mudança como apenas simbólica.

"O estabelecimento da Suprema Corte em 2009 não foi uma mudança significativa na Constituição do Reino Unido", afirma Grant.

"Ela substituiu o Comitê de Apelação da Câmara dos Lordes como a mais alta corte do país, porque os arranjos anteriores foram considerados inconsistentes com o princípio político conhecido como separação de poderes, que exige poderes Legislativo, Executivo e Judiciário separados", explica o professor.

Segundo Grant, o problema de independência entre os poderes era mais aparente que real. "Não mudou muito com o estabelecimento do Supremo Tribunal, que tem os mesmos poderes que o Comitê de Apelação da Câmara dos Lordes", avalia.

Os doze lordes do Comitê de Apelações foram os primeiros juízes da Suprema Corte e ficaram impedidos de votar na Câmara dos Lordes. Quando se aposentam da Suprema Corte, podem retornar à Câmara dos Lordes como membros plenos. Já os juízes recém-nomeados não têm assento na câmara superior do Parlamento.

Quando surge uma vaga, é constituída uma comissão independente de seleção, composta por representantes das diferentes jurisdições jurídicas do Reino Unido (Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda do Norte).

Os postulantes precisam ter sido juiz de algum tribunal superior por dois anos ou advogado com pelo menos 15 anos de experiência. Uma vez escolhido um novo juiz, eles são formalmente nomeados pela rainha, por indicação do primeiro-ministro.

Sem poderes supremos

O professor britânico James Grant explica que a Suprema Corte do Reino Unido não tem amplos poderes. Não pode, por exemplo, invalidar leis que são consideradas incompatíveis com a Constituição ou derrubar decisões do Parlamento, como acontece no Brasil e nos EUA.

Para Grant, o que todos os países precisam é de uma corte final para avaliar recursos e, segundo o professor, isso deve ser feito por um Judiciário independente.

"Isso é muito diferente da afirmação, que é mais polêmica, de que todos os países precisam de um tribunal com o poder de invalidar estatutos e tomar decisões sobre a Constituição que não podem ser anuladas pelo processo legislativo ordinário", afirma Grant.

Diferentemente do Reino Unido, o Supremo brasileiro acumula três funções.

Além de lidar com questões constitucionais (ou seja, determinar se leis, normas, atos e decisões das diversas instituições estão em acordo com a Constituição) e de ser última instância da Justiça (fazer análise de recursos), também tem atuado como um tribunal penal para políticos com foro privilegiado – competência que a Corte americana, por exemplo, não tem.

Para a Adriana Rocha Coutinho, professora de direito constitucional da PUC-PE, o Supremo brasileiro "talvez carregue nas costas funções demais".

O professor Luiz Guilherme Arcaro Conci lembra que foi a Constituição de 1988 que "empoderou" o STF e também o Ministério Público. Ele assinala que cada país, incluindo o Brasil, encontrou uma fórmula distinta para o funcionamento de sua corte superior, que segue não apenas a Constituição mas também suas normas sociais e arranjos políticos.

"É comum fazer transplantes. A Espanha copiou a Alemanha, o Brasil segue o modelo americano. Mas os sistemas vão se adequando a cada Estado, os países customizam seus sistemas de acordo com a própria realidade", observa Arcaro Conci.

'Fora, Supremo'

Apesar de serem categóricos em dizer que um país como o Brasil não conseguiria viver sem uma corte suprema, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que o STF não está imune a críticas nem a mudanças.

Os professores Adriana Rocha Coutinho, Luiz Guilherme Arcaro Conci e Nikolay Bispo assinalam que muitas das críticas ao STF são legítimas. Destacam como problemas o poder individual dos ministros de segurar por anos julgamentos, certas decisões monocráticas que deveriam ser colegiadas, a grande quantidade de processos em tramitação e manifestações controversas dos membros da corte na mídia.

"A instituição tem gargalos, pode melhorar", diz Bispo. "Mas nada disso justifica a implosão do STF como alguns defendem", completa Adriana Coutinho, dizendo que é possível pensar em mudanças para separar as competências recursais da competência de ser um tribunal que faz o controle das leis.

Autor de um estudo em que compara como funcionam as indicações para as cortes supremas em diferentes países do mundo, o consultor do Senado Roberto da Silva Ribeiro salienta que, além de repensar a forma de escolher os membros do STF, é preciso aprimorar o controle das atividades dos ministros.

"Vejo a necessidade de fazer ajustes para evitar abusos", diz Ribeiro. Ele sugere estabelecer critérios como experiência em cortes ou longa carreira na advocacia, definir a temporariedade do mandato – hoje, a indicação para o STF é feita pelo presidente da República, tradicionalmente a partir de nomes sugeridos por um grupo de juízes; o cargo é vitalício até a aposentadoria compulsória aos 75 anos – e estabelecer mecanismos de accountability uma vez que são os ministros que se autocontrolam.

"As funções do Supremo são necessárias para o regime democrático. Se for extinto hoje, teria que criar outro órgão para exercer as mesmas funções. Vai colocar o que no lugar?", questiona Roberto Ribeiro, emendando que o modelo inglês é muito peculiar por causa da força do Parlamento e da ausência de uma Constituição escrita. Mesmo assim, diz Ribeiro, o Reino Unido precisou se adequar a uma tendência de separar os poderes e lhes garantir independência para evitar abusos aoi criar a Suprema Corte em 2005.

O professor Marcelo Neves, da UnB, é categórico em dizer que "não tem sentido a extinção do STF, pois isso significaria a imposição de um regime autoritário".

"E, embora os ministros do STF não estejam imunes a investigações de suas eventuais condutas ilícitas, isso não pode ocorrer em um modelo de 'caça às bruxas', como propõe setores de extrema direita, com apoio até de filho do presidente da República. Eu critico as práticas dos ministros do STF, mas defendo a instituição", afirma, lembrando a frase dita pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro que afirmou serem necessários apenas "um cabo e um soldado para fechar o STF".

Eduardo Bolsonaro deu a declaração durante uma palestra, gravada em vídeo, em julho de 2018 para concurseiros no Paraná. Em nota, o deputado disse que a fala foi brincadeira e negou a intenção de fechar o Supremo.

 

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